sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

"O Esconderijo do Homem Triste" - parte III




Outras vezes, quando não está ninguém olhar para mim, ponho-me a cismar:
A luz é o meu túmulo.
Em tempos, os meus gestos tiveram o rigor da abelha que rouba o pólen à flor.
Com esses gestos quis construir um espaço para o silêncio.
Uma morada onde fosse possível ignorar o mundo, ou esquecê- lo.

De vez em quando, aceito ainda o mistério das palavras que me cercam e não coincidem, em nada, com a realidade.
Eu só quis celebrar a vida.
Encontrar o esconderijo onde fosse possível um derradeiro acto de paixão.

O esconderijo onde pudesse, de novo, tocar teu rosto e recusar a aridez da calúnia.
Mas a luz é o meu túmulo.

A pouco e pouco incendiaram-se os negros profundos, o círculo luminoso aprisionou-me, e as mãos gesticularam sem sentido.
O interior das paisagens guardou a tua ausência.
E numa última visão a madrugada irrompeu do mar adormecido.

As mãos abriram-se novamente, quando o dia começou a devorar a nudez do corpo.
Comovido, perdi a voz.
Não podia chamar-te, lembro-me, por isso desatei a escrever o teu nome nas paredes da cidade.

Tempo perdido. Já não podias ouvir-me nem ler-me.
Foi quando desejei, com ardor, este esconderijo.
Aqui, pelo menos, respiro ar condicionado, e um foco de luz simula a eternidade dos dias.

Não há emoções, nem palavras ditas em voz alta.
Não acontece nada, nem se ouve respiração alguma.
Quem me visita diz coisas fantásticas a meu respeito.
Nunca confirmo nem desminto. Limito-me a ouvir e calo-me.
Porque há coisas que devem correr com o tempo e, mais tarde ou mais cedo, nele se apagam.

É claro que também há coisas guardadas na minha memória de papel.
Mas essas, já não tenho a certeza de que alguém as tenha dito ou eu as tenha, de facto, ouvido.

Por vezes ponho-me a sorrir, mas ninguém consegue ver que sorrio,
porque o retrato que me esconde - como eu - está morto e desfocado.

E a luz é o nosso túmulo.

1 comentário:

BlueVelvet disse...

Triste, sentido, lindo.
Um beijo