quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

"O Esconderijo do Homem Triste" - parte II




Fui ter com um fotógrafo meu amigo e pedi-lhe para me retratar.
Ele acendeu um foco de luz. Sentei-me no centro dele. A máquina disparou sem cessar.

Gesticulei, abri os braços, mexi-me muito - como se soubesse que nunca mais o voltaria a fazer.

Quando o meu amigo mergulhou o papel fotográfico no revelador, eu também mergulhei. Mas devo ter desmaiado uns segundos, talvez minutos, porque ao retomar consciência senti as pernas e os braços dormentes - e todo o meu corpo estava mole.

Um véu de luz toldou-me a visão. Ceguei por instantes, mas não foi uma sensação desagradável. Depois, o corpo começou a ondear, a impregnar-se no papel e a coincidir com o retrato que o meu amigo fizera de mim.

Segundos mais tarde uma pinça metálica tirava-me do revelador. Senti, então, a frescura da água - e toda a superfície da folha de papel, o meu novo corpo, brilhou. Em seguida deixei-me entorpecer na temperatura tépida, voluptuosa, do fixador.

Tinha encontrado o esconderijo.

E aqui estou, diante de quem me visita e olha. Apesar de não ter deixado de ser um homem triste, adquiri a vantagem de estar sentado, e de já não precisar de fugir ou desejar seja o que for.

Mas o pior momento do dia é aquele em que nos separamos. Não consigo dormir. Fico noite fora com a minha solidão - e quem esteve a ver-me parte com o susto de continuar a existir.

Nenhum de nós é capaz de murmurar: fica comigo e toca-me. E a noite cai, de certeza, mais escura para quem parte.

Eu sou apenas a imagem do que fui. Não sinto nada.

Certa vez, um homem e uma mulher pararam diante de mim.
Olharam-me muito tempo.
Aproximaram-se, afastaram-se, voltaram a aproximar-se do vidro que me protege.
O nariz da mulher quase me tocou nos joelhos.

De repente, a mulher inclinou a cabeça, sobressaltou-se e disse:
- Zé, perdi o vidro do relógio.

O homem baixou-se e procurou-o. Quando o encontrou, deu-lho.
Mas ela argumentou:
- A culpa foi tua. Eu não queria vir aqui.

O homem, muito sério, respondeu-lhe.
- Francamente, Fátima, não te toquei no pulso. Não mexi no tempo. Nunca mexo no tempo...

2 comentários:

BlueVelvet disse...

Olá M
li e reli o que escreveste.
E depois li outra vez.
Gostei demais.
Volto cá depois, para te dizer porquê.
Beijinhos e veludinhos

sofialisboa disse...

quando os olhos olham para baixo, para a meia de leite que bebes, como quem esconde o seu sentir...um dia serás feliz e olharás de frente novamente sofialisboa